“Fez o
melhor que podia – não foi bom o bastante” – A. Kostler
1.
O sol ia
se deitando vagarosamente, em meio às nuvens, naquele início de manhã, depois
que chovera forte e ininterruptamente desde a noite anterior. Era o primeiro
sepultamento do dia no cemitério de São João Batista daquela localidade. Outros
dois estavam programados para antes, segundo o quadro de avisos da recepção,
mas esse se adiantara aos demais, devido ao estado delicado do corpo, que não
permitia se esperasse muito.
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O cortejo
não reunia muita gente. Apenas familiares e amigos de longa data da falecida,
ex-companheiros de trabalho e colegas dos tempos de escola.
O
caixão foi colocado na única gaveta ainda não ocupada no jazigo da família. Aos
poucos, as pessoas que prestavam suas últimas homenagens à falecida, começaram
a se retirar. Algumas em silêncio, cabisbaixas; outras, conversando amenidades,
esquecidas talvez que haviam acabado de presenciar um sepultamento.
Habituados
à situação os coveiros, dois homens de meia-idade, vestindo o uniforme azul com
detalhes em verde, de tecido rude e já bastante puído, destinado aos
trabalhadores braçais da prefeitura, trabalhavam compenetrados e absolutamente
indiferentes aos acontecimentos à sua volta.
Quando
o último tijolo que fechava a gaveta do jazigo foi assentado, Lúcia percebeu
que havia se rompido o derradeiro laço de afetividade que ainda mantinha com a sua
família. Acompanhada do marido, retirou-se, tomando o rumo da avenida central
do cemitério onde havia acabado de sepultar sua mãe.
Junto
ao marido buscava apoio para enfrentar com dignidade o terrível momento da
separação. Não sentiria a mesma dor se ao invés de enterrar a mãe, houvesse
enterrado o pai. Tinha dele muitas mágoas com as quais fora obrigada conviver durante
aqueles anos todos em respeito à mãe e por temer que qualquer rompimento
traumático e definitivo com o pai, abalaria ainda mais a o estado de saúde
precário da mãe. Agora finalmente estava livre para dar as costas ao que
restara da família à qual pertencia e seguir adiante. Talvez para bem longe.
Chegara a pensar inclusive na possibilidade de se mudar de cidade mais uma vez,
para um lugar onde não corresse o risco de esbarrar de repente com seu pai ou
então ouvir a voz dele, mesmo que ao longe.
Lúcia
acompanhava, ao acaso, o vôo desorientado de um pássaro procurando abrigo no
galho de uma árvore, quando, súbito, olhou para trás, e viu o seu irmão mais
novo, ainda junto ao túmulo da mãe, observando o trabalho dos coveiros.
Quando
Márcio nasceu, Lúcia já tinha onze anos. Ela procurava nisto encontrar razões
para a distância física e sentimental que sempre houvera entre eles. De
repente, enquanto desviava os olhos de Márcio para procurar o pássaro errante,
percebeu que, durante aqueles anos todos, nunca se preocupara com o irmão
caçula como deveria. Na verdade, tinha uma visão bastante crítica em relação a
ele, porque lhe causava decepção o modo inconseqüente como Márcio se comportava
perante a vida. Naqueles últimos meses, quando se agravara o estado de saúde da
mãe de ambos, e sua presença se fizera mais constante na casa dos pais, com os
quais, Márcio vivia, Lúcia percebera que o irmão tornara-se de fato, como ela
temia, um jovem bastante revoltado. Márcio demonstrava indiferença para com a
vida, e parecia fazê-lo sem nenhum arrependimento. Durante muito tempo Lúcia
achava que o comportamento estranho e arredio do irmão, era conseqüência da
incapacidade que ele demonstrara desde pequeno para enfrentar os problemas,
preferindo transferir aos mais próximos a responsabilidade e a solução dos
mesmos. Mas, naquele momento, enquanto o observava ao longe diante do túmulo da
mãe, pensou que bem poderia ao menos tentar entendê-lo e, talvez, respeitá-lo
em suas decisões. Afinal, era seu irmão.
Parou
de caminhar, de repente, e, pedindo licença ao marido, foi ao encontro de Márcio,
e, já bem próxima, deparou-se com o olhar compenetrado e ao mesmo tempo perdido
que ele, ao acaso, lhe dirigira repentinamente.
Márcio,
entretanto, parecia divagar em pensamentos longínquos. Aos olhos de Lúcia,
tornara-se como um espectro. Márcio continuou olhando-a, mas agora, com
indiferença. E ela deteve-se em observá-lo atentamente. Ele parecia não haver
tomado banho naqueles últimos dias, sequer fizera a barba, e, naquela manhã,
nem penteara o cabelo. A sua aparência desleixada sempre a incomodara muito.
Porém, naquele momento, ela queria
apenas lembrá-lo de que poderia lhe substituir a mãe. E tentara fazê-lo com um
olhar, porque não teria coragem de tentar com palavras. Embora este fosse o
repentino e inexplicável desejo que lhe acometia.
“Márcio...?
Você não vem?”. – disse ela.
Como
se voltasse à realidade, Márcio pousou o olhar sobre a irmã.
Tiago,
o marido de Lúcia, aproximava-se.
Márcio
respondeu indiferente:
“Por
que deveria?”.
Respostas
assim deixavam-na desconcertada. Nunca soubera como agir em tais
circunstâncias.
Cônscio
da situação desagradável, porém, comum naquela família, Tiago tratou de tirar a
esposa dali de perto. E, embora contrariada, Lúcia acompanhou o marido.
Deixavam
o cemitério, caminhando em direção ao carro, quando Lúcia olhou para trás e
encontrou novamente o irmão, ainda no mesmo lugar e do mesmo modo. E o que não
era comum experimentou um sentimento de afeição por ele. Algo que, durante o
trajeto para casa, quis acreditar fosse apenas piedade.
2.
Já
fazia dois meses que a mãe falecera, depois de tanto sofrer por uma doença
jamais diagnosticada. Márcio, agora, morava sozinho, na casa que para ele se
tornara enorme. O pai, durante excursão de férias de um grupo da terceira idade
do qual participava, havia conhecido uma senhora no litoral norte do estado com
a qual se simpatizara. Naquele dia, portanto, completava um mês que Pedro
Scarpini para lá se mudara levando suas malas, não sem avisar que voltaria “caso
as coisas não dessem certo por lá”. Todos os dias, antes de dormir, Márcio
deixava o orgulho de lado e implorava a Deus, de joelhos, que as coisas para o
seu pai continuassem dando certo.
Voltava
do banheiro enxugando as mãos na camisa quando o telefone da sala tocou. Era a
irmã perguntando sobre ele.
“Sim,
está tudo bem”. – ele respondeu.
“Quer
que eu mande alguém pra limpar a casa?”.
“Não”.
“Alguma
coisa pra comer?”.
“Não.
Não precisa. Não se preocupe”.
“Do
que você precisa então?”.
“Que
me deixe em paz”.
Tiago,
o marido de Lúcia, que acompanhava à distância a conversa, percebeu quando a
esposa fechou os olhos e prendeu a respiração. Viu, contrariado, quando ela
desligou o telefone, e, chorando, cruzou as pernas e escondeu o rosto com as
mãos.
“Como
você pode gostar de alguém que não gosta nem de si mesmo?” – perguntou.
“Acontece,
Tiago que ele é meu irmão!”
“Você
não pensava assim, antes de sua mãe falecer”.
“Mas
agora penso. Não sei exatamente o motivo. Mas isso é de menos importância. Tudo
que sei, é que meu irmão precisa de mim!”
“Pois
está enganada, Lúcia. Porque em verdade ele jamais precisou de ninguém. E
sempre fez questão de deixar isso bem claro para todos nós que somos sua
família”.
“Tiago,
eu tenho medo que ele faça alguma besteira”.
“Não
fará. Se tivesse de fazer já o teria feito”.
“Nunca
se sabe. Essas decisões podem ser repentinas. Podem surgir do nada. Assim, de
repente...”.
Olharam-se,
com ternura, como de hábito, e, depois de algum tempo, se abraçaram. Tiago
sabia como acalmá-la, Conhecia os argumentos e as justificativas capazes de
convencê-la. Contudo, naquela noite, vira essa crença abalada. Nenhum carinho,
palavra amiga, nada parecia afastar Márcio do pensamento de Lúcia. Nada. Nem
mesmo o abraço forte de Tiago, no qual, tanta segurança e conforto ela sempre
encontrara. Por fim, ele desistiu de persuadi-la. Levantou-se e foi até a
cozinha beber água. Quando retornou para o quarto, encontrou a esposa diante do
espelho já vestida e ajeitando os cabelos.
“Aonde
você vai uma hora dessas?”.
“Vou
sair”.
“Sim.
É o que parece. Mas onde exatamente?”
“Visitar
o meu irmão. Preciso saber como ele está”.
“São
três horas da manhã, Lúcia!”.
“Eu
sei”.
Olhou
para Tiago como se lhe pedisse desculpas, implorando para que tentasse ao menos
entender o que estava fazendo, já que não podia mesmo aceitar.
“Meu
amor sossegue! Afinal, eu não estou traindo você. Estou indo visitar o meu
irmão, que sinto precisar de mim”.
“Pois
bem Lúcia. Você está traindo a si mesma. Traindo os seus valores e seus
princípios. E espero que reconheça logo e de vez por toda a besteira que isso
significa”.
Ela
fez como se aquela sentença freasse o seu ânimo. Parou diante do marido e ficou
a olhá-lo, surpresa porque não esperava tamanha sinceridade e convicção da
parte dele.
“Talvez
seja isso mesmo – ela respondeu – Mas, por enquanto, farei o que manda o meu
coração”.
“Lúcia,
não consigo entender o que se passa com você ultimamente. Nunca deu a mínima
importância para o seu irmão. E ele, ao que parece, também não dá nenhuma
importância para você. Aliás, nunca deu. De maneira que não compreendo e, pra
ser sincero, me custa aceitar, esse repentino apego, essa demasiada preocupação
que, de repente, você passou a demonstrar por ele”.
Os
filhos dormiam tranqüilos no quarto ao lado. Tiago foi até a sala e ligou a TV.
Escutou, com certo desconforto, quando Lúcia colocou o carro em movimento.
Ao retornar
para casa, algumas horas depois, Lúcia encontrou Tiago e os filhos dormindo. Na
ponta dos pés, foi até o banheiro e lá ficou, deixando que a água quente do
chuveiro caísse sobre o seu corpo, durante um bom tempo.
Deitou-se,
mas não dormiu. Após refletir bastante na situação de Márcio, resolveu deixar
de lado esta preocupação e tentou acordar o marido porque queria sentir os seus
braços fortes a protegê-la. Porém, Tiago não cedeu às suas investidas.
Logo
amanheceu. Lúcia levantou-se, tomou outro banho e um comprimido para dor de cabeça
que encontrara no armário do banheiro, entre outros. Depois, beijou o marido,
ainda na cama, e foi para a cozinha preparar o café. Estava distraída,
colocando o pó dentro do coador descartável, quando sentiu o abraço forte e
apertado de Tiago despertando-lhe o desejo reprimido desde a noite anterior.
Com carinho e determinação, ele a colocou sentada na pia. E, naquela manhã, o
café demorou a sair.
Minutos
depois, juntos, à mesa, olhavam-se compenetrados, enquanto esperavam pelos
filhos, para, como de costume, tomar todos reunidos o café da manhã.
Tiago
tinha adoração por Lúcia. Não conseguia imaginar sua vida sem ela. Era um
sentimento de paixão e dependência física e espiritual, que, por vezes, chegava
a ser irritante. Até conhecê-la, nunca lhe passara pela cabeça casar-se, ter
filhos e formar família. Achava mesmo que iria levar vidinha solitária e
rotineira resolvendo problemas todos os dias no escritório de contabilidade do
qual era sócio.
Por
isso, algumas vezes, lhe custava acreditar que Lúcia havia surgido em sua vida
para lhe trazer a felicidade, a qual, ele tinha esperança de encontrá-la, mas
nenhuma certeza. Era nisso que estava pensando, quando, disse, de repente:
“Fazer
amor com você Lúcia, é como colher as rosas na primeira manhã de primavera”.
“Vai
sentir o perfume dos meus cabelos durante o dia, querido?”.
“Não
apenas dos teus cabelos. Mas de todo o teu corpo”.
“Vai
me amar em pensamento?”.
“Como
um escritor que imagina uma cena antes de escrevê-la”.
“Pra
você, querido, o que sou: Prosa? Ou poesia?”.
“Eu
poderia escrever uma dezena de prosas e outras tantas poesias sobre você, meu
amor, não seria o bastante para demonstrar o que sinto”. – ele parou, de
repente, e permaneceu algum tempo olhando na direção da janela da cozinha. Mas
quando voltou a olhá-la, disse ainda – Meu pai costumava dizer que não devemos
demonstrar a uma mulher todo o amor que sentimos por ela. Eu lamento, mas irei
desapontá-lo agora... Porque você, meu amor... - e a emoção o impediu de
continuar; às lágrimas não pôde resistir – Lúcia, eu... Quero que saiba...
Ela,
repentinamente, desviou o olhar dele, como quem se nega a receber resignada, a
sua sentença de morte. Mesmo assim ele disse:
“Amo você, Lúcia... Mais do que tudo. Mais do
que a mim mesmo. E sob qualquer circunstância. Portanto não suportaria, e
jamais admitiria a ideia de perdê-la”.
Ela
então olhou para ele, como se não pudesse aceitar tamanha devoção.
“Estarei
te amando sempre – ele continuou – Apesar do tempo, das dificuldades... E do
que possa acontecer”.
Tiago
baixou os olhos. Porque agora ele é que se via envolvido por forte emoção.
“Estarei
te amando. Ainda que distante do teu olhar... E do alcance de tuas mãos. Ainda
que a tua presença em minha vida seja tão somente uma lembrança que não se
apaga”.
“Não!
– disse ela, com ternura, tocando-lhe o rosto com carinho – Não, querido. Não
se sujeite a tanto. Você não merece isso. Se um dia eu faltar em sua vida...
continue. Não pare por minha causa. Continue buscando a felicidade que você
merece. Você haverá de encontrá-la”.
Tinham
por hábito se beijarem diante dos filhos, mesmo em situações muito especiais.
Lúcia compreendeu que aquela não era uma delas.
3.
A tarefa de
levar os filhos para a escola era responsabilidade de Lúcia, algo que ela fazia
com satisfação, porque os filhos demonstravam prazer em estudar, e, porque a
escola ficava a apenas alguns quarteirões da agência bancária onde trabalhava,
na área central da cidade.
Naquela
manhã, à porta da escola, ela despediu-se dos filhos com beijos e abraços
carinhosos.
Contudo,
antes de ir ao trabalho, resolveu visitar o irmão. Chamou, bateu à porta,
insistiu, nada. Se Márcio estava lá dentro da casa, não queria atendê-la. No
relógio do painel do carro viu que já eram quase nove horas, e entrava em
serviço às nove e meia. Não por acaso, havia, sob protestos, derrubado os
filhos da cama mais cedo. Queria a todo custo ver o irmão antes de ir para o
trabalho. Mas a expectativa que se revelara frustrante, agora, também lhe
causava irritação. Resolveu deixar momentaneamente de lado as preocupações com
o irmão caçula e cuidar da própria vida, cuja tarefa se tornava a cada dia mais
difícil.
Chegando
à agência bancária, onde trabalhava, logo encontrou uma vaga no estacionamento.
Olhando-se no retrovisor, ajeitou os cabelos, retocou a maquiagem, apanhou a
bolsa e desceu. Não deu dois passos alguém surgiu à sua frente.
“Márcio!
– disse, aliviada e surpresa ao mesmo tempo – Por onde andou? Estive em sua
casa e você... Você está bem?”.
“Melhor
agora”. – contudo, sua aparência não era
nada boa.
Tentando
não reparar nisso, Lúcia demonstrou satisfação:
“Que
bom que esteja bem!”.
Fez
menção de beijá-lo no rosto, mas ele a evitou, afastando-se, sob o olhar,
confuso dela – Vim aqui – ele disse, bastante sério – Porque lhe devo
desculpas. Por aquele dia no cemitério. E por tudo mais que tenho lhe causado
esses anos todos.
“Ora,
querido! – disse ela, carinhosamente – Não se preocupe. Eu compreendo você. Sim
eu compreendo. E você, por favor, Márcio, jamais duvide disto”.
Ele
ameaçou um sorriso que logo se desfez. Abaixou a cabeça, voltou a olhá-la,
apenas por um instante, como se lhe custasse acreditar no que ouvira. De
repente, sentiu o coração transbordar de felicidade, um sentimento do qual já
não se lembrava. Mas aquilo não era o bastante para ele atravessar a fronteira
que o separava da indiferença que tinha para com a irmã e do afeto que um dia,
na ingenuidade dos seus 12 anos, acreditara pudesse vir a ter.
Márcio
afastou-se da irmã, sem se despedir.
Enquanto
pôde, Lúcia permaneceu olhando para ele. Vinte e dois anos de idade, boa
estatura, magro, vestindo jeans; sujo e desbotado; camiseta preta lavada com
água sanitária e já bastante descorada; e nos pés, um tênis igualmente sujo,
velho e rasgado. Pensou quantos meses fazia que o irmão não cortava o cabelo.
Ela cortava os seus a cada vinte dias. Mas aquele moço, cuja aparência sempre
lhe causara repugnância, era o seu irmão. Tinha por hábito recriminá-lo pelas
escolhas que ele fizera em sua passagem da adolescência para a juventude. As
piores namoradas, os piores amigos, as piores decisões. Não se interessara
pelos estudos. Não havia concluído sequer o segundo grau. Prestava concursos
para cargos públicos apenas para acalmar os nervos do pai e acalentar as ilusões
da irmã. Um rapaz fora dos padrões, os quais, ele parecia fazer questão de
ignorá-los. Um sujeito infeliz e revoltado, por ter perdido muito cedo a
esperança. Contudo, olhando para Márcio, já bem distante, e refletindo um pouco
sobre si mesma, Lúcia percebia com tristeza a realidade: Já não havia diferença
entre eles. Porque ela, apesar de tudo o que possuía, os bens materiais, a vida
em família, o bom emprego, também não era feliz.
4.
Márcio girou
o tambor, que havia municiado com um único projétil. Sentiu uma pontada na
cabeça, pouco acima da orelha, antes mesmo de encostar o cano do revólver
naquela mesma posição, o que não chegou a fazê-lo, porque, de repente, pensou
na irmã. Houve tempo em que o fato de pensar nela seria motivo bastante para
disparar aquele maldito revólver. Mas agora era diferente. E ele não sabia o
motivo. Embora estivesse disposto a descobrir.
A noite ia
caindo e ventava forte. Finalmente havia tomado banho. Encontrara numa das
gavetas da cômoda uma camisa pólo, preta, da qual gostava muito, mas imaginava
não mais possuí-la. No armário, amontoado entre outras roupas, que não havia
passado por desleixo mesmo, encontrou uma calça jeans que, embora desbotada,
diferentemente das outras, mantinha-se longe das traças. Na estante da sala
pegou os salmos para ler. Era de opinião que o rei Davi, aquele da Bíblia e dos
salmos, fora o maior dos poetas, e nada mais. E Márcio gostava de poesias,
aquelas que descrevem os tormentos da alma. Não podia compreender por que o
homem não tem o direito de decidir o seu próprio destino. Tinha a posse da
vida, mas não tinha direito sobre ela. Embora lhe pertencesse, não poderia interrompê-la
quando quisesse, sem que isso lhe conduzisse às chamas do inferno.
Naquela
manhã, ainda na cama, embora desperto, surpreendera-se absolutamente incapaz de
um movimento. Demorara um pouco até levantar-se, porque olhara em redor e
vira-se novamente preso à sua medíocre rotina. E a temia.
Perdera tempo
lendo jornais e assistindo ao primeiro noticiário da tevê, no aparelho de 14
polegadas que ficava em cima da pia, ao lado do filtro de água.
O que estaria
fazendo Lúcia, naquele instante – pensou, de repente – Tomando banho? Vestindo-se?
O quê? Preparando o café da manhã para a sua família? Estaria pensando nele?
Sentindo ao mesmo tempo raiva e piedade dele? Provavelmente não.
Riu, quando
percebeu que Lúcia vivia situação semelhante a dele. Compreendera isso com
naturalidade, na manhã anterior, quando fixara os olhos nela, a ponto de
fazê-la sentir-se incomodada.
Junto à
família, no seu ambiente de trabalho, Lúcia demonstrava ares de felicidade e
satisfação, porque tinha bom emprego, casa grande e bonita, filhos educados e
saudáveis, marido exemplar que a amava perdidamente, embora, muitas vezes, não
soubesse demonstrar isso, não do modo como ela gostaria. Mas, intimamente,
Lucia lamentava-se. Sim – acreditava Márcio – Lúcia desejava com desespero
expurgar a raiva que sentia de si mesma. Pelas escolhas que fizera. Não tivera
a mesma coragem do irmão para admitir a sua realidade. Lúcia se recusara a
admitir o que era: uma artista.
Porque isso
lhe exigiria entregar-se a um sacrifício para o qual não estava preparada.
Talvez
– pensou Márcio – talvez
ela ainda tenha guardado os seus escritos, escondidos num caderno espiral, num
canto qualquer de sua casa. Talvez, se ousasse escrever novamente, suas
palavras, hoje, seriam impregnadas de dor e inconformismo, bem diferente das
doces palavras de esperança com as quais, em verso e prosa, preenchera as
intermináveis folhas daqueles cadernos, enquanto jovenzinha.
Diferentemente
do resto da família, Márcio sempre tivera interesse pelos escritos da irmã.
Passava horas a vê-la escrever. E se angustiava junto dela quando a via amassar
uma folha, rasgar outra ou quebrar a ponta do lápis, de tanta força que fazia
para escrever, como se as palavras pudessem sair de dentro daquele lápis diretamente
para o papel.
Lúcia não se
importava que Márcio lesse os manuscritos que produzia, porque tinha plena
convicção de que ele não entenderia nada mesmo. Contudo, na sua ingenuidade de
um menino de 09, 10 anos, ele acreditava compreender sim as linhas mal
traçadas, às vezes rabiscadas, quase ilegíveis, que saíam da mente de sua irmã.
Pensara nisso
tudo, enquanto olhava para uma tela em branco, esquecida sobre o cavalete
deixado perto da janela de seu quarto. Pegou o lápis e rabiscou alguma coisa na
tela, e sentiu-se aliviado por não vê-la mais em branco. Continuou rabiscando.
Aos poucos, o que eram apenas rabiscos, tornou-se um esboço. O mar agitado,
ondas gigantescas se quebrando nas pedras, cavalos em disparada na praia. E, ao
fundo, o cair da noite; o brilho da lua refletindo nas águas do mar. Quando deu
por si, percebeu as mãos sujas de tinta e os pincéis espalhados pelo chão.
Concluído, sem que ele soubesse como, um óleo sobre tela retratando uma
paisagem da natureza.
O trabalho
finalizado lhe proporcionava um pouco de paz. Algo momentâneo, rápido como
relâmpago, como piscar de olhos. De repente, não estava mais diante da tela que
produzira, mas diante de todos os medos e incertezas que tanto lhe
atormentavam. Se guardasse os quadros que pintara desde os 17 anos, não haveria
espaço nem para si dentro daquele quarto. Telas amontoadas, umas sobre as
outras seria o cenário do recinto. Por isso dava fim nos trabalhos, rasgando-os
com um canivete ou queimando-os no quintal da casa onde morava. Raras vezes
presenteava alguém com as telas que produzia. Guardar um de seus trabalhos era
coisa que até então, jamais fizera. Mas aquele, do mar agitado e dos cavalos em
disparada na praia... Aquele sim guardaria. Ao menos estava resolvido a
fazê-lo. E sabia o motivo.
5.
Aquelas
imagens não lhe saíam da mente. Pessoas que não conhecia. Pessoas se amando,
chorando e rindo. Em praças, ruas, apartamentos; bares e boates, cinemas;
motéis. Sob a luz do sol ou escondidas sob o manto da noite. Eram capazes de
lhe perturbar, de fazê-lo desacreditar na vida e em si mesmo.
Para Márcio,
não havia relação entre amor e sexo. Aos seus olhos e ao seu coração, ao seu modo
de entender a vida, amor era algo sublime, transcendente, portanto,
incompreensível. Coisa de poeta com tendências suicidas. Sexo era apenas desejo
de satisfação momentânea do instinto primário do homem; nada mais.
Márcio tinha
14 anos, quando vira a irmã, beijando Tiago, o então namorado e futuro marido.
E não se esquecia daquela cena. Submisso à lembrança que diuturnamente o
incomodava, mal se dava conta de tê-la visto beijar outros rapazes, também
naqueles dias, com maior desejo e satisfação.
Entretanto,
passado alguns anos, Márcio sabia que aquela não era mais a sua irmã. Não. A
Lúcia, de verdade, havia morrido num instante qualquer aos 23 anos, e agora
estava apodrecendo dentro daquele corpo de mulher, ainda bonita e atraente,
motivo de inveja para rivais não declaradas e de cobiça para homens mal
resolvidos. Ninguém sabia disso. Márcio sabia. E Lúcia desconfiava que ele
soubesse.
Nunca se
trataram como irmãos. Nunca se
consideraram como tal. Era um sentimento de indiferença declarado, de parte a
parte. Não apenas por causa da idade que os separava, mas porque, na concepção
de Lúcia, Márcio deveria ter seguido os seus passos. Mas ele não se submetera.
Tivera a coragem que a ela faltara. Pensara apenas em si e nos seus interesses,
nos seus objetivos jamais alcançáveis, porém, verdadeiros. Amara a si mesmo
mais do que qualquer outro, ou qualquer outra coisa. Não havia se corrompido. E
Lúcia o detestava por isso. Márcio era o avesso do avesso. Inconseqüente,
irresponsável, indiferente a tudo e a todos. Mas essas características as quais
Lúcia sempre considerara como graves e irreparáveis defeitos de formação de
caráter eram na verdade uma eloqüente e apaixonada declaração de amor à vida
por parte do irmão. Estava convencida. E o invejava por isso.
6.
Seis horas da
manhã. Márcio chegava à praça central da cidade. Trazia uma sacola de plástico,
dessas de supermercado. Próximo à banca de jornal encontrou um assento
desocupado. Não seria difícil encontrar um até que os camelôs montassem suas
barracas e as agências bancárias abrissem as portas
A praça
ocupava duas quadras da área central da cidade. No entorno, o que não era
agência bancária, era estacionamento. Outrora, havia casarões, cujos
proprietários, barões do café e alguns industriais, ostentaram opulência e
hipocrisia em meio à miséria daquela cidade durante muito tempo. Depois,
arruinados em seus negócios, se viram privados do luxo ao qual estavam
habituados e de suas mansões.
Enquanto
tirava de dentro da sacola os seus apetrechos, Márcio respondeu ao cumprimento
de um ex-companheiro dos tempos de escola, que, além de cumprimentá-lo com
entusiasmo lhe perguntara também, se Márcio lá estava à espera da abertura da
banca de jornal. Mal sabia que Márcio não tinha dinheiro no bolso, sequer para
o cafezinho.
O orvalho da
noite ainda estava nas folhagens espalhadas pelos canteiros daquele imenso
jardim que agora recebiam o aconchego e o calor dos primeiros raios de sol da
manhã.
Uma senhora
velhinha, que Márcio conhecia de longa data, aproximou-se lhe pedindo uns
trocados. Márcio, como sempre, mal lhe respondera, porque achava inoportuno
aquele maldito hábito.
Rio Claro, de
fato, era feito uma cidade dormitório. Seis horas da manhã de sábado, e a banca
de jornal estava fechada, a padaria também, assim como o botequim do chinês.
Entretanto, Márcio já desenhava. Era desse modo que ganhava o parco
dinheirinho, suficiente para almoçar, dia sim dia não; pra tomar um cafezinho,
dia sim dia não; porque o hábito de jantar, havia perdido há bastante tempo.
Estava
habituado à solidão porque morava sozinho e com algum conforto numa casa que se
tornara imensa desde a morte da mãe e o sumiço do pai. Uma casa jamais
concluída, as paredes da área apenas chapiscadas, o que causava à mesma
desagradável aparência de pobreza e desleixo, apesar das bonitas samambaias,
espalhadas pelas paredes. O pai nunca tivera interesse em terminar a casa.
Havia reparos que se faziam necessários. Pisos quebrados na cozinha, azulejos
caindo no banheiro, torneiras enguiçadas, trincas nas paredes dos quartos, de
modo que estes problemas jamais solucionados haviam se incorporado à aparência
definitiva do imóvel, não causando mais nenhum incomodo àqueles que ali viviam.
Pensava nisso
tudo, ao lembrar-se que, enquanto adolescente, tinha por hábito receber em
casa, aquele amigo com o qual conversara instantes atrás, para juntos, fazerem as
tarefas da escola.
Talvez aquele
amigo, daria boa risada, se acaso Márcio lhe contasse as dificuldades
financeiras pelas quais passava. Estava acostumado a todas elas, de modo que
não lhe representavam nenhum desconforto. Desde pequeno, com a doença da mãe,
aprendera a cuidar de si mesmo. Lavava e passava suas roupas e preparava
comida. Ultimamente, porém, dedicava-se à essas atividades apenas quando se
sentia disposto.
De repente,
achara que varrendo a casa todos os dias e seria o bastante para mantê-la
limpa. E vivia dessa maneira, procurando manter-se distante de seus
familiares. Jamais pediria ajuda nem
dinheiro emprestado para Lúcia, porque isto, em hipótese alguma o orgulho lhe
permitiria. Portanto, vivia de desenhar os retratos das pessoas que passavam
por aquele jardim e se interessavam pelo seu trabalho. Cobrava dez reais por
cada desenho; às vezes, porém, cobrava apenas cinco, quando percebia
sinceridade da parte da pessoa interessada. Era uma figura conhecida pelos
freqüentadores daquela praça, também pelos taxistas, pelos camelôs e pelos hippies
que, feito ele, ganhavam a vida naquele local.
Na falta de
algum interessado no seu trabalho, Márcio desenhava para si mesmo, para o seu
prazer. Estava fazendo exatamente isso, quando alguém, aproximou-se dele,
pedindo-lhe a atenção.
Mas ele
sequer respondeu, e continuou a desenhar ignorando a presença da própria irmã.
Quando
desenhava, simplesmente esquecia-se do mundo à sua volta.
Imbuída das
melhores intenções, Lúcia sujeitou-se ao desprezo de Márcio. Atitude que o
marido, à distância, não compartilhava.
Só depois de
algum tempo, com o lápis no canto da boca, a testa franzida, Márcio finalmente
olhou para a irmã. Estendeu-lhe a mão,
e, com um sorriso cínico, entregou-lhe a folha na qual trabalhava.
Quando viu a
si mesma, naquele desenho sombreado, feito a lápis; quando viu a si mesma,
chorando, também, naquele desenho, Lúcia o amassou entre as mãos, com raiva, e
o atirou para longe de si.
“Está vendo?
– disse Márcio – Como não sou o único que não gosta de você?”.
Num instante,
transformara em palavras o cinismo do seu olhar.
Palavras que
atingiram cheio o coração desprotegido de Lúcia. Chorando, ela se afastou.
Tiago
permaneceu à distância, seguindo com os olhos os passos da esposa, caminhando
agora pelo calçadão da Praça XV de Novembro, em meio às pessoas, já em maior
número, que por ali circulavam. A velha senhora que continuava por perto se
colocou – com a mão estendida – à frente de Lúcia, que lhe dirigiu olhar
carinhoso, mas, feito o irmão, preferiu ignorá-la.
Lúcia
caminhava hesitante e cabisbaixa; a visão embaçada pelas lágrimas. Inconformada
ante a atitude do irmão. Distraída, não se dava conta das pessoas passando ao
seu lado; algumas lhe dizendo bom dia. Também não ouvia o canto dos pássaros
reverenciando o sol que, ainda sonolento, atravessava as nuvens.
Tendo se
aproximado do marido, parou diante dele, e quando seus olhos o encontraram,
perguntaram-lhe sem obter resposta, o porquê daquilo tudo.
7.
Sentado na
poltrona da sala, o seu refúgio preferido, Márcio reproduzia mentalmente,
algumas vezes, num tom quase inaudível para si próprio, os diálogos dos atores,
frágeis pedaços de panos, bafejados pelo sopro da vida que mãos habilidosas
transformavam em sonhos.
O teatro de
bonecos, sempre exercera sobre ele grande fascínio. Márcio já havia assistido
àquela peça inúmeras vezes. “Romeu e Julieta” lhe simbolizavam a eterna
angústia diante do amor impossível; quando a esperança se transforma em nada
perante a dor da perda irreparável.
Mas não era
na sala ou na poltrona confortável, que Márcio se sentia. Era no meio do nada.
Um lugar incerto e desconhecido, para onde se refugiam as almas atormentadas.
Um lugar onde o céu é cinza, as árvores assustadoras, tudo é disforme e a
respiração difícil. Às vezes muito alto, às vezes, terrivelmente baixo, sempre
úmido. De repente, viu-se tentado a se
precipitar naquela dimensão escura, saturada de ausência, onde se acredita
planar indefinidamente, sentido o perfume de rosas, ouvindo o farfalhar das
árvores, o ruído dos cometas, a saudação dos deuses, sentados em poderosas
nuvens, e rindo, com tamanha falta de lucidez de quem acredita encontrar
liberdade na perdição.
A pessoa que
agora sentava na poltrona ao lado, era a mesma que ocupava o seu pensamento,
quase todo tempo, acometendo-lhe desconforto, sugando-lhe as energias.
Olhou para
ela, e, como sempre fazia, com indiferença. E Lúcia, por um momento, acreditou
encontrar ódio no olhar do irmão, finalmente voltado para si.
Nada
disseram. E um alívio ele experimentou quando percebeu o interesse da irmã pelo
espetáculo que ele proporcionava. Mas não demorou muito, a mão dela procurou a
dele, então descansando sobre o braço da poltrona.
Seu primeiro
impulso foi tirar o mais rápido possível, a mão dela de sobre a sua e
lançar-lhe mais um daqueles olhares desconcertantes. Mas não foi o que fez.
Porque não foi capaz de fazê-lo. Deixou que a mão da irmã ficasse sobre a sua,
ainda que, em nenhum momento, correspondesse ao olhar que ela lhe dirigia.
Lúcia se
retirou antes do término do espetáculo, aos primeiros acordes do Adaghietto da
5ª sinfonia de Mahler, que antecedeu a cena em que Julieta acusa a morte de
Romeu.
De longe, Márcio
acompanhou a irmã com os olhos. E, pela primeira vez, percebeu com desgosto que
não repudiara a presença dela.